sábado, 29 de outubro de 2011

(50) Noite de reflexão...

“Por entre os traços finos das persianas a luz invadia o quarto. Alvorecia um dia frio mas solarengo. A noite fora curta mas intensa e nos lençóis amarrotados estavam todos os traços do caminho que ambos percorreram nessa noite. Caminho sinuoso de entrega e saudade. Com a voz ainda sonolenta sussurrou-lhe ao ouvido: 
- Está na hora, não te atrases…- acariciou-lhe a face e ela enlevada pela ternura do gesto, cerrou de novo os olhos. Ele aproveitou para reflectir.
A verdade é que sentia que no fundo era um bocado de tudo o que ambos já tinham passado, de tudo o que já tinham errado e aprendido. 
- Vá lá, diz que não sabes quantos bofetadas a vida já te deu? – Interrogava-se ele tentando sentir o ardor na face das muitas que já levara e de quanto andou com calma, e quantos dias o tempo correu! Sabia que hoje era o produto das decisões que tivera que tomar há muito tempo atrás: entre fazer ou não, entre ir ou ficar, entre ter medo ou arriscar, entre viver ou ficar a sonhar. Recordava os conselhos que tantas vezes lhe deram, os dias em que se sentou e chorou... 
De soslaio, olhava a face tranquila que se deitava na almofada a seu lado, resistindo á luminosidade do dia que avançava. Insistiu, para quebrar os pensamentos. 
- Então? Está na hora, vais atrasar-te… 
No coração, sentia muitos dos dias de chuva em que ultimamente se molhara; dos sonhos que teimavam em não se realizar. Por um instante imaginou ser quem ele realmente gostaria de ter sido, mas a vida é feita de percalços e tinha mais era que saborear os momentos que estava a viver e não os manchar com atitudes e palavras, tantas vezes pouco dignificantes. 
Ela acordava lentamente e parecendo adivinhar o seu pensamento atirou com ternura: 
- Teremos sempre na nossa vida oportunidades perdidas, mas estas não serão as últimas, sempre haverá mais uma. Talvez não as que idealizámos, mas que nem por isso serão menos intensas. Teremos momentos de choro, que servirão para limpeza da alma. Problemas aparentemente sem solução, que serão superados e com o tempo ficarão menores. Teremos derrotas, mas no fim, o importante é que estaremos juntos – e isso bastará. 
- Vá lá…deixa-te de histórias e levanta-te. Vais atrasar-te! 
Roçou a face na almofada, para limpar uma lágrima e sorriu. O sol já estava alto.”

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

(49) Aquela música...

“Aquela música fazia-lhe lembrar tanta coisa... 
Lembrava-se daquela época em que estavam tão juntos, mas tão juntos, que não havia um único momento sequer em que ele não estivesse consigo, de forma totalmente palpável. Sentia-o até respirar. 
Lembrava-se de quando riam juntos e ele lhe dizia: 
- Gosto dessas tuas estridentes gargalhadas – ele sorria. 
Lembrava-se de como ele a consolava quando desesperava diante das dificuldades, na gestão do seu dia-a-dia profissional e de como tinha uma paciência danada diante dos seus dramas de mulher insegura que queria ser olhada com um misto de temor e admiração. Ao som daquela música que tantas vezes tocou no silêncio de cada regresso a casa, sorria agora tentando recordar as conversas de todos os dias, que ele transformava num arco-íris de palavras e agora, para ela, era apenas uma recordação bicolor.Lembrava-se e sentia uma saudade tão grande de revê-lo, mas tão grande, que não conseguiu deixar de recordar um conselho que dias antes lhe dera: 
- Perdoar, seguir em frente, entregar sem medos todos os teus sentimentos? Tu és assim, faz parte de ti e sempre assim serás meu querido. O que podes fazer é viver! Viver bem! Tu conheces como ninguém o arrependimento... Eu avisei-te muitas vezes... 
Queria tanto pedir-lhe desculpa por às vezes ser tão ausente e descrente. Desculpa por ser tão boca suja e dizer sempre o que pensava. Sentia uma vontade louca de lhe dizer:
- Aceita a minha mão estendida, segura-a e deixa-me segura, como sempre deixaste. 
Hoje, sentira uma saudade danada dele. Vontade de lhe pedir de novo e mais uma vez aquele abraço… 
Aquela música fazia-lhe lembrar tanta coisa…”